sexta-feira, 17 de março de 2017

Faz de conta


Ela se impôs este silêncio. Dentro de si, a alma se debate, quer se tornar voz. Mas ela a trancaficou. Cerrou os lábios, emudeceu. O único som que de si se ouve é o pestanejar dos olhos arregalados, apavorados. O rosto ovalou-se, o peito comprimiu-se. E agora duas mãos em sua garganta seguram o sopro que lhe quer sair.

Os dedos tapam o teclado em alvoroço, como se apalpassem uma parede em busca da saída escondida. Apenas na tela o corpo se exprime. Não sem medo, mas se exprime. Descreve para si mesmo o que vê; de si mesmo, um outro. Revive a cena a fim de se encontrar, a fim de que alguém lhe acene e aponte a saída. O fim. Quem sabe encontre um letreiro vermelho piscando: fim da escuridão.

Estou farta de você - escuta. Dessa dor que te esmaga, desse sorriso que se esconde. Farta desse medo que te apavora. Ela se assusta e sente uma mão puxar-lhe. Não sabe muito bem para onde. No início parece uma fuga, mas logo entende que é uma dança. Rodopia - lhe diz. Ela tem dificuldade de seguir a melodia. Tropeça, cai, levanta-se, cai outra vez. Nem sabia que havia música em torno de si. Mas há. Apenas ouça e siga o ritmo. Basta seguir o curso do rio.

Ela olha e vê água congelada por todo canto. Cante, se preciso for. Invente os pássaros que não podes ver. Traga-os da tua terra pra cá. Desenhe verde nas árvores. Ou pinte-as das cores que quiser. Tire do bolso a tua maneira. Enxugue da tua face o suor da tua caminhada. Coloque tempero na tua comida. Deixe ouvirem o rufar dos tambores no teu peito. Mostre os fogos que brilham no teu céu. 

Ela carrega a sua cruz, e todas que pode. No seu caminho não há ninguém para dividir o peso com ela. Acredita estar só. Seus joelhos enfraquecem, quer quedar-se e no chão ficar. Seus pensamentos bambeiam as suas pernas e ela só pensa em ficar. Mas, de repente, essa voz. Corre para abraçá-la e não perdê-la de vista. É uma promessa, uma tentativa, uma aposta. Não consegue mais ouvi-la. Quer que se torne sua. Quer transformar o imperativo em verbo seu; da sua boca, no passado. Quer. Faz de conta.

Saiu a menina. Fugiu desse canto. Empurrou pra fora o seu canto. Reparou as dores dos homens, as cores dos homens. Ofertou a eles as suas flores. Deixou o ar levar as suas palavras. Leve. Sob a luz da lua, do céu que trouxe para si, no alto do monte, entregou a Deus o dia inteiro. Preferiria ali ficar. Sempre ficar. Uma tenda para si no alto do monte. Lugar seguro. Mas o dia amanheceu e ao pé do monte há gente, muito a se fazer. Desce. Tanto dentro de si. As suas vozes se misturam. Fala. Ela se reconhece de novo. E volta a contar histórias.


4 comentários:

  1. C'est une grande introspection! Congratulations! :)

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  2. Mari, eu li esse texto sem nem respirar, pelo menos não senti a respiração. Gostei muito.. isso é muito denso, estou me identificando nas suas palavras. Obrigada por compartilhar e viva o texto!

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  3. Obrigada você pela leitura. Tenho sentido mesmo algo em comum entre nossos textos. Viva!

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