Hoje olhei para ele e não o reconheci. Desde o início
acompanho as suas mudanças. Posso prever seus gestos, adivinhar seus desejos,
impedir que se machuque em vão. Posso lhe arrancar gargalhadas, consolá-lo,
acompanhá-lo em suas pequenas aventuras e até entender a sua maneira singular
de oferecer e pedir carinho. Mas hoje, subitamente, ele se tornou um estranho para mim. De repente,
na mesma pátria, não falávamos a mesma língua. Abriu-se um
abismo estranho entre nós.
Somada às minhas frases, outras se entrecruzam e lhe
dão voz. Ele pega todas elas, como o seu lego colorido, e constrói, se
constrói. Testa encaixes, monta, desmonta. Muitas vezes fica bravo sem razão.
Depois retoma o seu penoso trabalho. O modo como empilha sua torre não é o meu.
E isso é tão belo quanto assustador. Olho afastando o rosto, sem saber a
princípio como apreciar. Suspense. As suas pecinhas que iam subindo
pouco a pouco estão todas juntas diante de mim. Susto. E falam alto. Eu,
desconcertada, quero logo traduzir o que dizem. Mas o seu formato não me parece
nada familiar. Desenho estranho para o meu catálogo já fora de moda.
Bem-vindo! Saúdo-o. Convido-lhe gentilmente a entrar
para o hall dos membros da família. Apresento-lhe todas as construções
outrora realizadas, já bem acomodadas. Estávamos mesmo precisando renovar o
nosso repertório, digo para mim mesma. E também arejar esse espaço tão
conhecido. Sua montagem é um pouco esquisita perto das que já fiz, preciso
confessar. Desequilibra as cores equilibradas a duras penas. Mas, a um só
tempo, propõe um jeito novo de ordenar.
Um pouco de sentido aqui, um pouco acolá. Nós dois
vamos construindo torres e rindo das nossas estranhezas. Dessa língua dele que
tento falar, dessa língua minha que ele tenta aprender. Juntos fazemos uma
babel sem pretensões de domínio, mas com desejo de chegar ao céu. Em seguida,
separados na nossa maneira de expressar, eu olho de banda, percebo-o
construindo sozinho, desenvolto, senhor de si, do seu tempo e de sua linguagem.
E quando de canto a canto ele sorri, rasga-se em mim uma fresta de luz.
Sinto. Sei que minhas cores estão ali. E até o modo
como as organiza segue o ritmo da minha construção. Mas, de que importa as
proximidades e as distâncias? Há sentido. Em cada montagem, o brilho nos olhos e o constante maravilhamento é o que faz com
que a brincadeira nunca acabe. Por hoje, porém, precisa terminar. Guardamos
juntos as pecinhas espalhadas no chão. Eu mais do que ele, sempre. Amanhã,
tornaremos a revirar, juntos, a nossa caixa de surpresas. Tudo de novo.
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