sexta-feira, 31 de março de 2017

Semente


Sempre a mesma panela, cheia de histórias. Sem pressão, por ora. Seleciono os grãos e deixo-os escorrer até o fundo. Não há muito o que se deitar fora: nem pedras nem grãos estragados. O tempo corre fácil ao som dessa cachoeira miúda. São meus dedos que escolhem a força da queda d'água.

Embaladas por esse som, dançam as belas palavras sobre a Trindade. Escuto com atenção dividida, mas não menos atenta, a mensagem. Afinal, tudo está sob a mesma mesa. Os caroços de feijão, os ruídos que escorregam pelos meus ouvidos. Alimento preparado, partilhado, degustado.

De repente ele veio. Não o chamei. Apenas esfreguei com mais força os grãos e a música se intensificou. Ele adora sons. Aperta o dedo na bochecha, arregala os olhos e solta um imenso ó, ao ouvir algo novo. Pressenti que a experiência sensório-musical lhe traria um prazer incontido.

Coloco entre as pernas a panela. Ele corre para pegar os caroços sob a mesa. Não sabe muito a respeito de selecionar. Seu mundo é mais feito de amálgamas que de separações. Ouve com facilidade o feijão, a minha voz e a voz que anuncia a Trindade. Continua a correr para pegar os grãos. Fatalmente eles tombam no chão. As mãozinhas miúdas não conseguem carregar o tanto de alegria que gostariam.

Reclama um pouco por ter de juntar o que cai. Reproduz um universo adulto, cansado de tomar tempo com o que cabe no tempo. Cata um por um, coloca na panela. O ápice da história são as mãozinhas afundadas no feijão, as perninhas trêmulas de tão felizes, quase saltitantes, os olhos que não param de sorrir para mim, o aprendizado da palavra que, por fim, traduzirá o momento. Ou, ao menos, tentará.

Olho com satisfação. Em algum lugar de mim o texto se escreve. Enquanto isso, numa outra e mesma terra caem as sementes da Trindade. Ou talvez seja primeiro num maço de algodão molhado. Como aquele que a gente espia ansioso nos tempos de escola para ver que, sim, a semente pode brotar. Tanta água sobre si cotidianamente…

Vê-la saindo desses filamentos branqueados, dessa neve, dessa página, dessa trégua, dessa dor, é como um suspiro profundo. Ainda que o caule que a sustente seja frágil, ele carrega a cor da esperança, como se convencionou dizer. E há esse olhar-menino posto sobre ela. Vibrante.

O pequenino grão me trouxe para fora, quando, na verdade, foi eu quem lhe apresentei a vida. E brincamos. Na soma das vozes e dos sorriros, a Trindade. Mãos dadas a cirandar. Céu que pousou sobre nós. Céu que jamais se afastou de nós, amalgamado à vida toda. Famílias reunidas nessa mesa hoje e desde sempre. Filho, feijão, semente minha. Hoje, nasci mais uma vez.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Estrada



A escrita me ensina sobre a vida. Poucos são os textos em que a ideia me vem decifrada. Na maioria das vezes, uma frase despenca em minhas mãos. Fruta madura que abandona o pé, desejando passar de cor a sabor. Ela vem sozinha. Eu que me vire com o resto. Reclama abrigo noutro lugar, e só.

Outras vezes, o texto deságua. As barragens não suportam, o peito é pequeno para tanta vida. Tudo está prestes a transbordar. Não há frase, apenas ideias em correnteza. Reclama socorro, o tempo urge, e só.

O mais difícil é quando a mente anuvia. O céu cinza anuncia chuva. E, de certo, o céu vai despencar. Mas, antes disso, o raio cortante, o estrondo do trovão. Não há frases nem ideias. Há uma voz entalada, enlatada, que de repente explode. Reclama…, e só.

Por fim, pode o olhar se perder nesses campos branquejantes. Ansiar por neles correr. Assentar-se confortavelmente, contemplar. Mas, a inércia. Esse horizonte lhe seduz e causa-lhe espanto. A um só tempo desafio e promessa. Reclama paciência e mãos para cultivar, e só.

Só preciso fazer o caminho do texto. Assim como quando tomo a estrada e o destino me parece estranho, mas na chegada percebo que não esqueci o percurso. Só preciso entregar-me, aventurar-me, me deixar conduzir. Saber como tudo começa não retira as surpresas do caminho.

A escrita é um ato de fé. Aposto que chegarei num destino. Não há plena clareza nem certezas neste solo. Ao fazer a rota percebo que a estrada bifurca e não sei para onde ir. E também não há mais como voltar. Preciso fazer uma escolha; várias escolhas no trajeto. Passo por estrada de chão, caminho pedregoso. Há momentos em que tudo corre fácil e sem obstáculos. A tranquilidade extrema pode por tudo a perder. Olhos atentos. Tenho medo dos declives e as ascendências não causam menos desespero. Continuo, preciso chegar ao fim. Não o avisto. Apenas vou. É a minha cegueira que produz a minha visão. O fim da linha começa a se desenhar.

A escrita é sono noturno, é entrada em elevador. Fecho os olhos e espero acordar, chegar. Confio que o descanso e a parada também ajudam e proporcionam caminhos que independem de mim. Lanço-me nos braços da morte para alcançar a vida. Poder abrir os olhos e com ela encontrar é quase um sonho.

A vida ajuda-me a escrever. A escrita ajuda-me a viver. A vida lança-me para a escrita. A escrita mostra-me pelo canto da janela a vida. Arrasta a cortina e me diz: “você sabe como se faz”. Abro a porta, ponho-me a caminho, hesitante, cambaleante. Cravo os olhos no chão e vou. Talvez haja outros começos. Ainda precisarei tentar. Por ora, tento não esquecer que a vida é um ato de fé.

Faço o pequeno trajeto. Chego até o elevador. Entro. Faço uma oração de desespero. Sempre penso se é melhor estar só ou acompanhada em caso de pane. Sempre penso na pane. Sou sacudida pela abrupta chegada. Só preciso continuar.


Coloco um pé depois o outro. Percorro o corredor vazio, olho as portas fechadas. Paro para ler um cartaz. Ele faz despencar algo dentro de mim. Não é frase, não é fruta. Colho a tristeza que cai. Saio correndo. Caminho, só. Encontro um lugar seguro. Ponho-me a escrever. E esse é o lugar onde por ora chego. Com a vida, com a escrita.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Faz de conta


Ela se impôs este silêncio. Dentro de si, a alma se debate, quer se tornar voz. Mas ela a trancaficou. Cerrou os lábios, emudeceu. O único som que de si se ouve é o pestanejar dos olhos arregalados, apavorados. O rosto ovalou-se, o peito comprimiu-se. E agora duas mãos em sua garganta seguram o sopro que lhe quer sair.

Os dedos tapam o teclado em alvoroço, como se apalpassem uma parede em busca da saída escondida. Apenas na tela o corpo se exprime. Não sem medo, mas se exprime. Descreve para si mesmo o que vê; de si mesmo, um outro. Revive a cena a fim de se encontrar, a fim de que alguém lhe acene e aponte a saída. O fim. Quem sabe encontre um letreiro vermelho piscando: fim da escuridão.

Estou farta de você - escuta. Dessa dor que te esmaga, desse sorriso que se esconde. Farta desse medo que te apavora. Ela se assusta e sente uma mão puxar-lhe. Não sabe muito bem para onde. No início parece uma fuga, mas logo entende que é uma dança. Rodopia - lhe diz. Ela tem dificuldade de seguir a melodia. Tropeça, cai, levanta-se, cai outra vez. Nem sabia que havia música em torno de si. Mas há. Apenas ouça e siga o ritmo. Basta seguir o curso do rio.

Ela olha e vê água congelada por todo canto. Cante, se preciso for. Invente os pássaros que não podes ver. Traga-os da tua terra pra cá. Desenhe verde nas árvores. Ou pinte-as das cores que quiser. Tire do bolso a tua maneira. Enxugue da tua face o suor da tua caminhada. Coloque tempero na tua comida. Deixe ouvirem o rufar dos tambores no teu peito. Mostre os fogos que brilham no teu céu. 

Ela carrega a sua cruz, e todas que pode. No seu caminho não há ninguém para dividir o peso com ela. Acredita estar só. Seus joelhos enfraquecem, quer quedar-se e no chão ficar. Seus pensamentos bambeiam as suas pernas e ela só pensa em ficar. Mas, de repente, essa voz. Corre para abraçá-la e não perdê-la de vista. É uma promessa, uma tentativa, uma aposta. Não consegue mais ouvi-la. Quer que se torne sua. Quer transformar o imperativo em verbo seu; da sua boca, no passado. Quer. Faz de conta.

Saiu a menina. Fugiu desse canto. Empurrou pra fora o seu canto. Reparou as dores dos homens, as cores dos homens. Ofertou a eles as suas flores. Deixou o ar levar as suas palavras. Leve. Sob a luz da lua, do céu que trouxe para si, no alto do monte, entregou a Deus o dia inteiro. Preferiria ali ficar. Sempre ficar. Uma tenda para si no alto do monte. Lugar seguro. Mas o dia amanheceu e ao pé do monte há gente, muito a se fazer. Desce. Tanto dentro de si. As suas vozes se misturam. Fala. Ela se reconhece de novo. E volta a contar histórias.