sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Medo


Ele está à minha espreita. Corro e me assento o mais rápido que posso frente ao meu computador. Preciso fugir para algum lugar. Começo a chorar, limpo os olhos sem graça. Nem quero olhar para os lados, para não correr o risco de que alguém assista a esse meu espetáculo patético, repetido, quase diário. Preciso de um copo de água, de alguém que me dê a mão e me ajude a vencê-lo. Meu silêncio grita, mas ninguém pode escutar.

É só mais um trabalho, repito para mim mesma. Mas chega um momento em que o mantra se espatifa no chão e eu me lembro que a minha primeira experiência laboriosa, essa do dia a dia, também não foi diferente. O peso da responsabilidade, a sensação contínua e esmagadora de que eu simplesmente não sou capaz e não tenho sequer condição de estar onde estou, trazem o medo para muito perto.

Choro, alívio. Choro e escrevo, libertação. Há algum tempo traduziram para mim o que me acontecia: “dom das lágrimas”. Não sei se em alguma narrativa cristã esse talento é descrito. Ele não me parece nada altruísta. Nas Escrituras, se algum lugar tivesse, creio que estaria entre os que servem para edificação própria. Porém, não consigo perceber muito bem em que medida ele me constrói ou me conduz ao bem. É apenas um eterno refazer-me.

Corre um pouco de mim neste pranto. Ou talvez da sujeira que há em mim. Aquilo que o amor lança fora. Não, não posso viver com essa mão agarrada à minha garganta, essa palavra entalada no peito, esse peso sem fim sob os meus ombros. E tudo se desfaz em lágrimas, antes que seja tarde demais. Antes que eu me perca em meus labirintos, antes que meus sentimentos me afoguem, antes que meus olhos embacem e eu não veja mais sentido algum.

Por essa límpida água, dom divino, sou grata. Há os que se secaram por dentro, há os que julgam que tudo é sentimentalismo e incapacidade de bem racionalizar. Eu sou grata por essa fonte. No limite de mim mesma ela jorra. Ela me traz de volta à Criação, à água viva, de um poço onde não se vai buscar água. Desobstrui-me do lixo existencial e, desafogada, consigo olhar mais uma vez para o alto.

Ele está ainda à espreita. Num canto de mim a sua presença indesejada ainda dói. Mas, respiro fundo. Engulo essa escrita que alimenta a minha alma. Lembro-me de que no início era o verbo, e de que o verbo se fez carne, e se deu como pão partido e vinho derramado. E não tenho dificuldade alguma em entender que Cristo e a linguagem, numa metáfora esplêndida, só podem significar, juntos, comida.

Preciso parar a corrida. Já me aquietei num canto tranquilo dessas entrelinhas. Minha alma derramou as suas lavas. O calor dentro de mim é testemunha. O tempo também escorreu. Mas, não quero pensar nisso agora. A graça de refazer-me é, enfim, uma dádiva. Sinto amor pelo que sou. Desenroscada de meu casulo, não hei de negar amor aos que hoje ver. Amo a Deus. E assim é lançado para fora de mim tudo o que não é verdadeiro. Recomeço.



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Panela de pressão


A mão segura os grãos de feijão. Deixa-os escorrer. Seleciona os que estão bons para o cozimento. Remove-os prazerosamente na panela funda de pressão. Prepara-os para serem lavados. Enquanto isso, enquanto a sensibilidade está a flor da pele e a textura dita o tom, escorrem textos, que se misturam ao feijão por fazer. Ela vê o feijão, pode senti-lo em suas mãos, mas o momento se distende, criando outros espaços que da mente escorrem.

Está feliz. Não escapou do tempo para escrever. Mas, de repente, dois espaços, logo em seguida, muitos espaços, ocuparam todo o tempo. A alegria medida pelos grãos de feijão, muitos, que desobstruíram o caminho entre ela e a escrita, há tanto impedido. Jorram textos naquela panela. Como esperado, ela não consegue ver a hora de coloca-los sobre a mesa.

Geralmente cozinha na pressão. Mas, agora, parece respirar. Parece que, desta vez, o ar não sairá esguichado e barulhento. Enche o peito, respira fundo. Alívio. Imagina-se no exercício diário e silencioso de segurar as palavras, deixa-las escorrer, seleciona-las, remove-las, prepara-las…Faz planos, anda de mãos dadas com a escrita. Reconciliação. Mesmo que não saiba exatamente em que ponto o laço se desfez, ou se chegou a desfazer-se, ou se chegou a ser laço.

Por ora, o feijão. Precisa ficar pronto. E ao colocar a casa em ordem, ela segue ordenando o pensamento, que só se organiza, de fato, por escrito. Talvez seria mais sincero dizer que a escrita lhe organiza por inteiro, lhe ordena. Ela apenas escuta sua voz e escreve. Mas, por ora, o feijão, em seguida, a casa. Guarda a expectativa. Cozinha-a em banho-maria. Essa maneira nova, esse novo estilo, parecem convir melhor à sua vida regrada. Um prato sem pressa, planejado, com o tempo preciso para ser feito, com os ingredientes selecionados. Nada de última hora. Nada de restos misturados.

Porém, num tempo que não viu, num espaço que lhe fugiu, sua cozinha transformou-se. Encheu-se de pratos e talheres por lavar. Não consegue mais ver o que estava fazendo, muito menos o que ainda tem a fazer. Perdeu-se no intransitável. A alegria deu lugar ao pranto e ela não consegue ver mais nada, apenas o que está a sua frente. Aquele tenebroso apito. Sua memória revive constantemente a panela de feijão aberta. Os grãos sendo removidos. Mergulha então o mais fundo que pode naquele instante. Mas não consegue se encontrar. A textura se foi...

Não há nada mais a ser dito. Ela apenas tirará o feijão do fogo e o colocará sobre a mesa. Comerá o seu sabor costumeiro. Vagando no espaço, seus olhos procuram o caminho por onde escoou a escrita. A pia entupida não lhe permite vê-la. E os pratos vão se lavando, mais comida cai pelo encanamento, mais distante de suas mãos ela ficou. Volta a cozinhar restos, oferta migalhas. Precisa por a mesa. Sente vergonha pelos pratos que esperam vazios. Como poderá neles deitar tão pouca arte?

Parou o tempo, poucos espaços. Algo se fez, entretanto, entretempos. Seu corpo adoece sem comida. Natural. O Verbo lhe nutre. Desde o início separando-lhe essa história. Desde o incontável inicio, toda a eternidade. Posta dentro de si, ela transforma-se em palavra. Mas o transforma-se tomba da frase. Tudo em estado bruto. Contudo, serve. Haverá apetite para esse prato? Não sabe. Cozinha. E apenas serve.