quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Trabalho de parto

Ando de um lado para o outro. Vinte passos. No caminho a dor me para. Paro. Aceito o momento da natureza a reclamar seu tempo. Em breve meu corpo se abrirá para a vida. Por ora, esse anúncio constante. O medo da morte mora ao lado. Lembro de canções de outrora. Quero ouvi-las, cantarola-las, ser embalada por esses braços de música que me trazem alívio. Começo a escuta-las. Minha alma estremece pela lembrança que me trazem, pelo futuro que virá, por esse agora. Nessa melodia o fio da história. Não apenas a minha, mas a de muitos que foram amados e se puseram no caminho do amor. Caminho. De mãos dadas a força da comunidade é maior. Suas mãos me lembram, nessas vinte passadas, que vamos juntos. Você suportando essa minha dor, dando sua vida por mim. Eu ouvindo corajosamente a sua voz, e o seu silêncio. Somos Cristo e a igreja. Numa versão ainda imperfeita do que será. Vamos de um canto ao outro. Canto. Às vezes choro. Mistura de medo e gratidão. É hora de deixar a casa. Do lado de fora o caminho é mais longo, a dor é mais forte, o frio nos acompanha. Mas, logo a vida nos será multiplicada e, por isso, vamos. A noite é companhia perfeita. Pouco barulho, pouca luz. Estamos atentos ao que nos chama. Chegamos. Uma vez mais nos apoiamos. Urge a hora. Papéis, escadas, assinaturas, perguntas e respostas já sem muita razão. A modernidade nos acolhe na sala ao lado. Mãos, sorrisos e curtas apresentações esquentam a nossa alma. Águas. A vida tem pressa. Os gritos cortam o silêncio, a dor ocupa a sala inteira. Comunicamo-nos em muitas línguas. Mas, não há Babel alguma. As linguagens em plena reverência ao seu Criador. De todas elas, a do olhar, a do toque. É breve e intenso esse momento. Um bebê apoia-se sobre meu ventre. Lágrimas. Toco-lhe em estado de graça e alívio. É o fim deste tempo, abertura de outros tempos. Na conclusão do trabalho, um novo campo a ser cultivado. Mandato. Daqui seguiremos oferecendo-nos por completo, a fim de entregar a Ele o que em confiança nos deu. Pela graça, as nossas mãos erguidas hão de lhe oferecer os frutos. Para isso, toma ó Pai, desde agora, o que sempre foi teu.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Mais uma vez, parto

Espero-te, pequenino. Na expectativa de um novo encontro, no temor do que já conheço. Ignorância e conhecimento se abraçam e criam esse momento ambíguo, essa dança de sim e não, essa espera por um momento único já sabido. Vamos, pequeno. Agora sou eu e você. Passarei por esse rito de vida e morte, com todas as minhas forças, o meu grito, a minha dor, apenas para te encontrar. Já é hora. Não podes minimizar meu sofrimento. Ninguém pode. A dor faz parte da nossa existência. Não podemos ignora-la. Sim, eu temo. Mas, adiante. Serei forte. Aguardo os sinais da tua chegada. Ela é crua e dolorida. Ela é sangue e lágrimas. É silêncio em meio aos grunhidos de dor. Mas é bela. De uma beleza que se escreve com o alívio, com o sopro e com o choro. Ela abre um tempo de privações e provas. E também de superação. Te esperamos, pequenino. Você revela a nossa grandeza e a nossa pequenez. Faz-nos sonhar com cores não vistas, com uma dependência completa nos braços do Criador. Tu nos trazes a Palavra encarnada. E entendemos que apenas um ser humano poderia faze-la nascer no mundo. Em ti vemos aquele a quem amamos: provisão e socorro na singeleza de uma criança. Textos fluem de um olhar que carrega a inocência. Vem com coragem! Recomeçamos contigo. Deus confiou em nós. Aleluia!

domingo, 6 de janeiro de 2019

Todas nós

Está exausta. Entregou-se por inteiro. Colocada a criança para dormir, e com outra sendo carregada no ventre, ela só quer largar-se sobre a cama. Não faz projetos de escrita e para a leitura, que lhe é cara, não encontra lugar. O cansaço a toma por completo. Suas orações são fragmentadas, embaladas pelo sono e por outros pensamentos esparsos que lhe tomam.


Ela não sou eu. Os tempos nos separam. Quando escrevo, ela me deixa. Mas ela também sou eu. Somos muitas. Dou-lhe voz. Ela empresta-me histórias. Como o tempo lhe escapa, sou eu quem a faço viver. Seu sopro depende dessa escrita. Por ela, leio e planejo. Por meio dela, toco gentes e coisas. Ela me devolve uma realidade palpável, por vezes bela, por vezes áspera. Ela é organismo; é mãos e pés. Eu sou...


O melhor de mim empregado em cada tarefa quotidiana. Sou videira plantada em minha casa. Aqui floresço. Não estou desprovida de dons. Não enterrei talentos. Recebi como dádiva o tempo chamado agora. Já não imploro que aceitem o que minhas mãos estendidas ofertam. Semeio e também sou derramada nesse chão. Rego flores. Espero sementes brotarem. Sou água: límpida, ligeira, maleável, passageira, não existindo por mim, vinda da fonte. Ofereço mais do que tenho. Assim eu sou.


Mas o cheiro do lírio no interior da casa alcança a fechadura das portas e flutua no ar. A beleza que brota aqui dentro cria pernas e ganha as ruas. E sigo levando-a onde vou. Carrego amor na minha cesta de flor. Frente à frieza das ruas e das cidades, ofereço flores. Sou mulher, sou perfume.Num banco de praça, cercada de verde, encontro vida. Repouso. Mas preciso também ganhar corredores e salas, locomover de um prédio a outro, subir elevadores, carregar livros e lidar com pessoas. Até novamente subir as escadas de casa, depositar o cesto vazio e não pensar em flores, por ora.


Fim do dia, todas elas se encontram. Pedem força, falam-se rapidamente. Até que eu tomo meu lugar. Elas não precisam de registrar o tempo ou de cantar os seus atos. Eu preciso. Ao contempla-las, a vida se estica, se alarga, se representa. E ao fim e ao cabo, tudo que é corriqueiro, banal, pequenino e efêmero, ganha mais verde e verdade pelas palavras. Elas, deitadas sobre o papel; eu, observadora de quem são. Tão pobre que sou, elas me enriquecem. Tão pobre que são, eu as enriqueço. Assim, nos doamos diariamente.