segunda-feira, 29 de maio de 2017

O homicídio


E tudo se apagou de repente. As cortinas do palco foram cerradas e o espetáculo terminou sem aplausos. Uma súbita escuridão os invadiu. As mãos, as duas juntas, taparam com força os lábios, para conter o susto. Haviam matado. Como nunca antes fizeram, como nunca antes pensaram em fazer. O fato lhes aparecia assim: cru. Meu corpo também sentia a dureza da morte.

Era um dia de sol. Um dia de céu azul claro, sem nuvens. Daqueles que conseguem reunir na rua, em todas as ruas, as crianças do bairro para brincar. Rua larga e ladeada de largas casas. Um pedacinho do interior na cidade grande. Árvores em arco, abraçando-se próximas do azul. Um corredor de vida. A memória, trapaceira, não consegue se lembrar das brincadeiras do dia. Pode se esforçar para busca-las dentro de si, mas não encontra. Como poderia? Apenas o ato brutal ficou riscado na alma. Como o preto do carvão na calçada. Como o branco do giz no asfalto. Marcado.

Ao olhar pela cara do céu e da vítima, não havia indícios do que aconteceria. A manhã iluminada prometia inocentes aventuras. O movimento começara cedo naquele dia. Os portões das casas se abriam um após o outro. Em poucas horas, todos os meninos já estavam reunidos na rua. Quero pensar que corriam e riam, pois era isso que faziam de melhor. De repente, ele apareceu. Despertou em nós o desejo de voar, que já nos habitava. Como todas as crianças da roda o fizeram, eu também o tomei em minhas mãos.

Era uma espécie frágil. Provavelmente havia sido lançado ali pela força do vento. Se bem que não havia ventos tão fortes naquela manhã. Talvez, tenha caído do ninho. Talvez. Não conseguíamos identificar ao certo de qual árvore ele teria tombado. Elas se entrelaçavam em tamanha cumplicidade, que ficava difícil um veredito final. Bem, ele estava ali. Não parecia desconhecer as suas asas, apesar de uma delas estar ferida. Ao menos é o que conseguimos deduzir, já que não ousava levantar voo. E por não sabermos com exatidão a causa de sua queda no meio da rua, da nossa rua, nem podermos dar um diagnóstico preciso de seu estado, o acolhemos com os nossos olhares.

É preciso lançá-lo ao alto – uma voz adulta sugeriu da calçada. Assim ele toma forças e torna a voar. Ela falou assim, como se espirrasse, respingando naquele quadro em nossa frente todas as suas tintas. Permanecemos apenas acompanhando a pouca movimentação do bicho. Estáticos. Como nenhum de nós tinha coragem suficiente para a experiência, a voz invadiu a rua com toda a sua certeza e tentou o voo forçado, lançando o pássaro ao alto. Nós, apenas em silêncio, seguíamos com curiosidade as mãos que deixaram uma greta para o bicho respirar. Das mãos, a avezinha alcançou o céu, e, do céu, tombou novamente ao chão. Pum! Levamos um susto com a queda; que não fora nem tão forte e nem tão alta, como em mim hoje ressoa. Mas, fez-nos estremecer, por nos imaginarmos por alguns instantes no lugar do que ora caía novamente. Depois, fomos tomados de uma estranha indignação. Que asas eram aquelas?­ – perguntávamo-nos, sem precisar falar. Como não voar, se a natureza lhe dera asas? Asas!

Pela rua, em doida correria, nós sempre abríamos os braços em bando. Em alguns dias, trepávamos nas árvores mais altas para, pulando de seus galhos, voarmos pelo menos por alguns instantes. Guardávamos, na nossa curta lembrança, a gostosa sensação daquele tempo em que saltávamos de lugares muito altos para a pouca idade e caímos livres nos braços de nossos pais. Sem contar as pipas, os aviões de papel e toda tentativa de voo que cercava a nossa infância. Um verdadeiro desejo de voar. O pequenino caído em nossa rua não precisava de invenções. Era, de fato, um pássaro. Suas asas, verdadeiramente asas, faziam-nos sonhar e esquecer o ferimento em uma delas.

Como a voz adulta já havia nos deixado, decepcionada com a sugestão que não vingara de imediato, resolvemos dar prosseguimento ao empreendimento. Para nós, era só uma questão de tempo e determinação. O bichinho ali nos pedia uma resposta. Então, começamos a passa-lo de mão em mão. Cada um que o pegava, acreditava. Eu também acreditei. E o lançamos inúmeras vezes ao ar. O tempo entre um lançamento e outro não era maior que o tempo da queda e do encontro com uma nova mão, que tornava a lançá-lo.

O experimento logo virou brincadeira. Sorríamos em grande alvoroço. Agora éramos nós que pintávamos com as tintas que a voz lançou. Esfregávamos mãos e pés, numa desordem típica de nossa idade. Seguíamos com entusiasmo o colega da vez, que abria as pernas, arqueava-as, pegava um grande impulso com o bicho escondido nas mãos e vruuuum! Lá se ia o nosso pássaro. Aguardávamos sua chegada ao céu com grande expectativa. Antecipávamos a alegria que teríamos ao vê-lo voar. Torcíamos por ele e frustrávamo-nos todos ao vê-lo cair novamente. O pássaro resistia bravamente aos lançamentos e quedas. E nós entendíamos que este era o sinal que nos dava para uma nova tentativa. Guardávamos a certeza: ele voaria. Voaria em nome do desejo de cada um ali. Levaria em suas asas os nossos sonhos de nuvens, de atravessar as nuvens e ver um novo desenho se formar no céu. De ver o mundo do alto e de sentir um frio na barriga com a descida brusca.

Foi quando a nuvem negra surgiu diante de nossos olhos. E tudo se apagou. Um baque na alma. O coração batia forte e a respiração acompanhava ofegante. Fizéramos algo muito errado. Pressenti. Mas, o quê? Nós só queríamos... Havia vida depois da morte. Vimos atônitos muitas larvas saírem daquele corpinho frágil. E torcemos o rosto numa reação confusa de asco e compaixão. Morrêramos. Sentimos forte o chamado da terra, do chão que pisávamos, dos raios do sol a nós pedir providências. Rapidamente, alguém abandonou o grupo e correu em casa para pegar uma caixa de fósforos vazia. Não sei mais se quem sugeriu o arranjo foi o menino veloz ou foi a voz. Só sei que permaneci no mesmo lugar. O peso da tristeza imobilizando-me as pernas. Segurei, no meio da rua, uma dor sem choro, apenas no peito.

O pássaro era como nós, e só agora eu o sabia. A frieza da morte doeu em meus ossos. Não sei como tudo se organizou entre nós. A memória ludibria-me. Depositamos com algum cuidado o corpinho na caixa amarela improvisada. Depois a enterramos num buraco não muito fundo do campinho de futebol, onde havia terra suficiente para revirarmos. Quero acreditar que houve algum cortejo pelo pequeno e que fabricamos uma cruz com dois palitos que sobraram da caixa de fósforos. Tudo como nos diziam que ele merecia e que nós ainda não sabíamos fazer. Acabou. Naquele chão, não era um pássaro que enterrávamos, eram nossas próprias asas.

Não sei por que insisto em lembrar daquela pequena caixa como se fosse roxa. Uma roxa memória. O pássaro não poderia caber nas caixinhas mais miúdas, que, sem rótulo, seriam desta cor. Cor da morte. O caixão do pequeno era certamente amarelo. Um amarelo vivo com aqueles desenhos vermelhos e pretos em cima, que nada tinham a ver com a solenidade. O fato briga com a memória no caminho do texto, empurrando para o palco uma luz inesperada. Sou salva por esse guache amarelo que entorna no papel e na alma. A história cria a cor e desembaça o olhar. Saio como criança que volta à rua para brincar novamente. Leve. Como se a lembrança não tivesse sido carregada até aqui a duras penas. A imaginação retira do chão os meninos que queriam voar. E, num outro céu, em bando, escuto a gargalhada passarífica de todos nós. Som de travessura. Cara de molecagem. Cortando a nuvem, agora fazemos os desenhos que tanto sonhávamos no azul.


domingo, 14 de maio de 2017

O chamado


E como é que se escreve a alegria? A manhã me cutucou e me coloquei de pé. Ficou deitada a preguiça, rolando na cama. Atei cada lado da cortina e, quando pensei que olhava para fora, era o fora quem me olhava. Chamou-me: vem ver a luz do dia! Passava pouco da madrugada, mas parecia que as horas corriam há léguas em minha frente. Olhei o relógio. Nenhum atraso. Havia um brilho diferente nos olhos do céu. Era uma festa surpresa – supus. Fui convidada a cantar e celebrar a vida. De quem? De todos, de tudo.

E como é que se escreve a alegria? Os caminhões estão parados nas vias. Os homens descarregam suas máquinas. Andam de um lado para o outro. Cores fluorescentes marcam cones e uniformes. Um homem controla com sua bandeirinha o tráfego dos pedestres. O barulho dos tratores carregando a terra que foi revolvida e o som de furadeira do lado de fora compõem a orquestra matutina. O quarteirão em movimento segue a regência do maestro no meio da rua. E a cidade muda e o homem nela trabalha.

E como é que se escreve a alegria? A casa cheira a café fresco. Na mesa o tin tin dos sorrisos, uma música ao fundo que canta junto com a cidade. Palavras e pães distribuídos. O menino batuca na mesa, depois brinca no chão, faz pirraça, rola para tudo quanto é canto e segura o tempo em suas mãos. Balanço a colcha no ar. A luz me ajuda a ver a poeira saindo lentamente. Estendo a cama com paciência. Junto a roupa para lavar porque hoje tudo quer ficar novo. Xícaras na pia, chuveiro ligado. A água canta em todo canto. Separo artigos em minha mesa. Folhas inéditas. As folhas verdíssimas das árvores, as novas folhas para ler.

E como é que se escreve a alegria? Beijo nos lábios, beijo no rosto. Despedidas e uma promessa de reencontro ao final do dia. A casa em silêncio. O barulho que vai durar o dia inteiro do lado de fora. Gratidão por ambos. Joelhos dobrados, prece de socorro, porque tudo está apenas no começo. Não me demoro. Que Deus abençoe as nações, todo o mundo, cada gente, é o chamado de hoje. Os muitos cantos me convidam. Uma paz de não ter de cuidar de mim. E um desejo sem pé nem cabeça de colocar para fora o filho chorão.

E como é que se escreve a alegria? Se alguém sabe como não ser romântico, como não ser ridículo, como não parecer ingênuo, por favor, me diga. Se alguém não teme a palavra pobre, a experiência fugidia, o ritmo tropeçante, que me fale. Se alguém consegue não ofender com um sorriso o que sofre ou macular a alegria do que saiu para dançar, dê-me as mãos. Mas, hoje a alegria me chama, amigo. E me faz esse pedido esdrúxulo de escrevê-la. Eu pergunto a ela: mas, como? Ela sacode os ombros, moleca que é, e sai correndo na minha frente, procurando outros olhos carregados de beleza. Respondo contando cada canto. Depois, solto o lápis, continuo a lida.


segunda-feira, 8 de maio de 2017

A corda


Vamos, meu filho! Repito para o pequeno ao longo do caminho. Suas pernas são miúdas, o tempo escorre com sua pressa costumeira. Ele para, pega um graveto no chão, vira o rosto para acompanhar o barulho dos carros que passam, cisma com alguém que segue na calçada. Porque seguro sua mão, a cada meio metro sinto um solavanco. Tento respirar com paciência. A caminhada pela calçada iluminada é um espetáculo para seus olhos. Anda no passeio marcando presença, fazendo barulho com o solado do sapato, balançando a cabeça como se ouvisse música, equilibrando-se ora de um lado ora de outro do corpo.

A primavera chegou há pouco e o verde apenas começou a aparecer. Mas, depois dos dias nublados, o sol, no céu do Norte, parece obrigar os olhos a andarem apertados. A luz rasga o azul. As cortinas do grande teatro se abrem e o mundo faz a sua reestreia. No palco da cidade, o pequeno acompanha cada movimento. Abre os olhos surpreendido. Os ouvidos parecem também mais apurados. E tudo que está ao alcance de suas mãos, ele quer tocar.

Vamos, minha filha. Ele repete para mim. Joga a corda e fica à espera. Daqui de dentro nada posso ver. Nem mesmo imagens projetadas do mundo. A luz não alcançava a entrada até as mãos que seguram a corda aparecer. Nesta caverna, o mundo não é falsamente representado. Ele está ausente. Um eterno revirar dos pensamentos em si mesmos o empurraram para fora. Subo com dificuldade. A força que faço na corda me dói as mãos. O corpo inteiro num esforço descomunal para chegar ao topo. Sinto a luz entrar. Acabo virando o rosto na chegada, sem perceber. Faço força, uma perna depois outra, saio. Respiro fundo na chegada. Sob meu antebraço, pressiono os olhos uma vez mais. Levanto a cabeça com dificuldade. Minhas mãos estão dormentes. Cambaleante, equilibro o corpo ora de um lado ora de outro, e vou.

O dia não está ensolarado. Caminho sozinha pelo passeio, na companhia de um vento gelado que estapeia a minha face. Uma frieza que desperta para a vida pela força bruta. Escondo-me no meu casaco. Sempre preferi a carícia da brisa. Ergo os ombros e aperto os braços contra o corpo, em clara rebelião contra o tempo. Minha mente esconde-se embaixo de pesados cobertores, enquanto em meus ouvidos meus fones reproduzem uma música qualquer que me ajuda na fuga. Não sei como do sonho pelo aconchego passo rapidamente às espirais existenciais. Sigo rodando até cair num país sem maravilhas. Buraco escuro. Pálpebras cerradas impedem a entrada e a saída da luz. Aqui dentro uma conversa infinita se faz. O vazio não está em questão. Mas a clausura em si. De repente a voz, a corda, o convite para subir.

Ouso recomeçar. Faço o caminho das crianças. Vejo a gente que passa, retiro os fones para escutar o assobio do vento. Toco, com as mãos do olhar, os galhos secos que estão no mais alto de uma árvore. Reparo as construções humanas. Não consigo ir muito além – digo para mim mesma. Convenço-me de que estou forçando a alma a sair. Uma outra e nova construção. Subitamente, reparo as mãos machucadas pela corda, áspera corda lançada em meu resgate. Fio grosso por onde a experiência se fez e se contou. Nas cicatrizes, os muitos encontros, a troca possível, a história narrada. No topo, a luz, a que veio para iluminar o mundo todo, esperava-me. Desconfio de quem sejam as mãos que mantiveram a corda firme para que eu pudesse subir. Acordei de um sono profundo. A alma, a criança e tudo que se chamou vida saíram pelas ruas batendo palmas.


domingo, 30 de abril de 2017

Primavera


Antes de despedir-se com beijos e fazer as habituais recomendações, ela me diz: Escreve. Continue a escrever. Num relance de luz que liga os tempos, vejo-me na cozinha ou na sala de casa, caderno nas mãos, solicitando com o olhar a sua escuta para a leitura de mais um texto recém-chegado. Uma vez mais ela cria um espaço no tempo, assenta-se, respira fundo e, na última frase lida, abre um sorriso. Ela sonha que eu encontre outros ouvidos na minha jornada. Sabe que o mundo tem pressa para a poesia. Sob o seu olhar melancólico, saio balançando meu caderno e andando num mundo de papel. Até chegar nas flores de agora. Escrevo.

Quando o broto começa a abrir, desabrocha também aqui dentro a vida. O que por meses se esconde, explode abruptamente diante dos olhos e encanta. E eu, qual potrinho correndo pelo pasto, sou criança cavalgando livre para abraçar o vento. Salta a esperança de maneira incontida, eufórica, quase sem lugar dentro do peito, ao ver o verde que desponta. As vozes internas dançam em ciranda, seguindo uma música há tempos esquecida. Do calor produzido no peito, uma faísca escapa do olhar.

Quando o broto está prestes a sair, é violento e doloroso. O grito incomparável é testemunha do instante em que o céu do paraíso escureceu. O corpo é rasgado. O suor escorre. Atravesso a fronteira da dor e do desespero. Há os que observam, há os que esperam, há os que tocam. Por um instante, toda a vida resumida a uma tarefa única. Nenhum direito sobre si, nenhum pensamento além. É preciso que ele venha. Em meio a trevas, dá-se a luz. E o sol, fulguroso, irrompe na noite quando ele chega.

Vejo da minha janela uma árvore de verdor estonteante. Ela, que um dia também foi broto, ladeia uma das vias da cidade e empresta beleza aos passantes. Os fracos galhos invernais foram tocados pelos dedos da primavera. E, quando menos se esperava, alguém anunciou que a vida escondida enfim chegou. Foi assim com ela, foi assim com todas plantadas ao seu lado. A solidariedade arbórea se reproduzindo há séculos, à espera de florescer. Na mudança da estação, o milagre de nascer explodindo diante da humanidade.


No mistério que carreguei em mim, comunicamos. Umas com as outras. Eu com ela: uma amizade de broto e árvore transformada em cumplicidade de muitos ramos. O abraço que nos damos hoje, no entrelaçar de muitos galhos, tem os braços da história. Conheço-o, meu broto. Conhece-me, minha árvore. Conhecemo-nos, ambas. O sonho que me ultrapassou, entendo-o agora. Na matéria que a árvore produziu, tracejo. Leio alto para outros ouvidos o texto. Como ela, projeto, numa espécie de desejo sem fim, a plenitude do jardim para o coração do broto. Mas, na noite da cidade, braços erguidos com outras árvores-irmãs, o que esperamos de fato é a luz primeira chegar.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Pão


Ela não sabia o que fazer com as suas angústias. Abriu uma gaveta e as depositou ali. Abriu uma outra, com todos os remédios que comprou para si, pegou um deles em suas mãos e engoliu. Seu corpo aprendeu a adoecer para toma-los. Quase todo mês visita um especialista e reclama algo novo, de novo.

Já teve dor no peito, nas costas, na cintura. Inflamação de garganta, dor de cabeça, problema de vista, nariz entupido, otite e dor no maxilar. Dor de barriga, nos rins. Já lhe doeram as pernas, os joelhos, a planta do pé e todos os dedos. Os braços, os cotovelos, as mãos e todos os dedos. 

Até que um dia abriu a gaveta. E resolveu transformar sua dor em palavras. No fim das contas, não precisava apenas falar, mas transformar. Fazer um bolo real do bolo feito no peito, na garganta ou em qualquer lugar de si. Necessidade física de fazer a farinha virar massa e de ver a massa virar pão. A escrita lhe é palpável.

E na massa que hoje faz, acrescenta farinha conforme lhe manda os olhos. Toda boa cozinheira faz de olho a receita - repete a sua mãe, sem que nada precise dizer. Ela, por sua vez, afunda as mãos, pressiona a massa boa de manusear e, agora, já não existem gavetas, nem o que dentro delas havia. Consegue reunir tudo que é naquela bacia. Nada de si subtraído. Enrola com gosto o bolo redondo em suas mãos.

Outro dia assentou-se com o pequeno para ensinar-lhe a lidar com as próprias angústias. Ele achava que fazia pão. Ou, mais certo, cria numa experiência com o mundo, que se resumia, ainda, a uma massa mole, sem ponto algum. Mas ela ensinava-lhe a arte de trabalhar com as mãos para liberar a alma. De colocar toda a alma para trabalhar.

Ela pensa constantemente no coentro branco que caía do céu. Na quantidade exata. Provisão diária para a feitura de um pão com gosto de mel. Maná. Numa mistura que faz a massa cinzenta, ela lembra do pai, que todas as tardes levava o saquinho ocre com pães francês para a casa. O gosto do maná devia-lhes ser familiar e não enjoativo, como a princípio ela imagina. Assim como o pão feito de cascas e miolo, cheio de muito ar do lado de dentro, que para ela tem hoje um gosto nostálgico.

O maná é como esse pão que ora prepara. Sempre uma expectativa. Ela não tem o que guardar para o dia seguinte. Mas, seus pensamentos já se enchem de bolor, pois, como os que não sabem esperar, imagina que guardaria a farinha, se a tivesse todos os dias. Por demais angustiada com a vida, o Pai colocou em suas mãos poucas porções. Sem sobras.

É preciso se esquecer nessa massa, filho - explica. Fazer um grande rolo com o que está nas mãos. Depois, cortar os pedaços, passar o amarelo do ovo em cima e ver a casa se encher de calor e cheiros. E, enfim, esperar. Não há nada melhor do que a espera seguida da partilha.

O pequeno não entende quase nada do que ela fala. Mas também não gosta de esperar. Precisará repetir o ritual do pão inúmeras vezes. Do forno saem os assados que acabaram de fazer e, da mesa, passam às mãos. Ela lembra da multidão assentada na relva, alimentada pelo milagre; dos doze à mesa que pouco entendiam sobre o pão partido. O pequeno apenas sorri satisfeito com seu pedaço nas mãos.

Antes de se deitar, ela tomará com tristeza o seu comprimido para a dor. Seu corpo hoje precisa dos subterfúgios farmacêuticos. Porém, ela dormirá feliz, pela esperança que rondou a casa e habitou em si. Sonhará com o banquete, onde certamente o anfitrião servirá pão. E, por alguns dias, na mesa do café da manhã, eles comerão as alegrias e as dores que amassaram juntos.