domingo, 30 de abril de 2017

Primavera


Antes de despedir-se com beijos e fazer as habituais recomendações, ela me diz: Escreve. Continue a escrever. Num relance de luz que liga os tempos, vejo-me na cozinha ou na sala de casa, caderno nas mãos, solicitando com o olhar a sua escuta para a leitura de mais um texto recém-chegado. Uma vez mais ela cria um espaço no tempo, assenta-se, respira fundo e, na última frase lida, abre um sorriso. Ela sonha que eu encontre outros ouvidos na minha jornada. Sabe que o mundo tem pressa para a poesia. Sob o seu olhar melancólico, saio balançando meu caderno e andando num mundo de papel. Até chegar nas flores de agora. Escrevo.

Quando o broto começa a abrir, desabrocha também aqui dentro a vida. O que por meses se esconde, explode abruptamente diante dos olhos e encanta. E eu, qual potrinho correndo pelo pasto, sou criança cavalgando livre para abraçar o vento. Salta a esperança de maneira incontida, eufórica, quase sem lugar dentro do peito, ao ver o verde que desponta. As vozes internas dançam em ciranda, seguindo uma música há tempos esquecida. Do calor produzido no peito, uma faísca escapa do olhar.

Quando o broto está prestes a sair, é violento e doloroso. O grito incomparável é testemunha do instante em que o céu do paraíso escureceu. O corpo é rasgado. O suor escorre. Atravesso a fronteira da dor e do desespero. Há os que observam, há os que esperam, há os que tocam. Por um instante, toda a vida resumida a uma tarefa única. Nenhum direito sobre si, nenhum pensamento além. É preciso que ele venha. Em meio a trevas, dá-se a luz. E o sol, fulguroso, irrompe na noite quando ele chega.

Vejo da minha janela uma árvore de verdor estonteante. Ela, que um dia também foi broto, ladeia uma das vias da cidade e empresta beleza aos passantes. Os fracos galhos invernais foram tocados pelos dedos da primavera. E, quando menos se esperava, alguém anunciou que a vida escondida enfim chegou. Foi assim com ela, foi assim com todas plantadas ao seu lado. A solidariedade arbórea se reproduzindo há séculos, à espera de florescer. Na mudança da estação, o milagre de nascer explodindo diante da humanidade.


No mistério que carreguei em mim, comunicamos. Umas com as outras. Eu com ela: uma amizade de broto e árvore transformada em cumplicidade de muitos ramos. O abraço que nos damos hoje, no entrelaçar de muitos galhos, tem os braços da história. Conheço-o, meu broto. Conhece-me, minha árvore. Conhecemo-nos, ambas. O sonho que me ultrapassou, entendo-o agora. Na matéria que a árvore produziu, tracejo. Leio alto para outros ouvidos o texto. Como ela, projeto, numa espécie de desejo sem fim, a plenitude do jardim para o coração do broto. Mas, na noite da cidade, braços erguidos com outras árvores-irmãs, o que esperamos de fato é a luz primeira chegar.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Pão


Ela não sabia o que fazer com as suas angústias. Abriu uma gaveta e as depositou ali. Abriu uma outra, com todos os remédios que comprou para si, pegou um deles em suas mãos e engoliu. Seu corpo aprendeu a adoecer para toma-los. Quase todo mês visita um especialista e reclama algo novo, de novo.

Já teve dor no peito, nas costas, na cintura. Inflamação de garganta, dor de cabeça, problema de vista, nariz entupido, otite e dor no maxilar. Dor de barriga, nos rins. Já lhe doeram as pernas, os joelhos, a planta do pé e todos os dedos. Os braços, os cotovelos, as mãos e todos os dedos. 

Até que um dia abriu a gaveta. E resolveu transformar sua dor em palavras. No fim das contas, não precisava apenas falar, mas transformar. Fazer um bolo real do bolo feito no peito, na garganta ou em qualquer lugar de si. Necessidade física de fazer a farinha virar massa e de ver a massa virar pão. A escrita lhe é palpável.

E na massa que hoje faz, acrescenta farinha conforme lhe manda os olhos. Toda boa cozinheira faz de olho a receita - repete a sua mãe, sem que nada precise dizer. Ela, por sua vez, afunda as mãos, pressiona a massa boa de manusear e, agora, já não existem gavetas, nem o que dentro delas havia. Consegue reunir tudo que é naquela bacia. Nada de si subtraído. Enrola com gosto o bolo redondo em suas mãos.

Outro dia assentou-se com o pequeno para ensinar-lhe a lidar com as próprias angústias. Ele achava que fazia pão. Ou, mais certo, cria numa experiência com o mundo, que se resumia, ainda, a uma massa mole, sem ponto algum. Mas ela ensinava-lhe a arte de trabalhar com as mãos para liberar a alma. De colocar toda a alma para trabalhar.

Ela pensa constantemente no coentro branco que caía do céu. Na quantidade exata. Provisão diária para a feitura de um pão com gosto de mel. Maná. Numa mistura que faz a massa cinzenta, ela lembra do pai, que todas as tardes levava o saquinho ocre com pães francês para a casa. O gosto do maná devia-lhes ser familiar e não enjoativo, como a princípio ela imagina. Assim como o pão feito de cascas e miolo, cheio de muito ar do lado de dentro, que para ela tem hoje um gosto nostálgico.

O maná é como esse pão que ora prepara. Sempre uma expectativa. Ela não tem o que guardar para o dia seguinte. Mas, seus pensamentos já se enchem de bolor, pois, como os que não sabem esperar, imagina que guardaria a farinha, se a tivesse todos os dias. Por demais angustiada com a vida, o Pai colocou em suas mãos poucas porções. Sem sobras.

É preciso se esquecer nessa massa, filho - explica. Fazer um grande rolo com o que está nas mãos. Depois, cortar os pedaços, passar o amarelo do ovo em cima e ver a casa se encher de calor e cheiros. E, enfim, esperar. Não há nada melhor do que a espera seguida da partilha.

O pequeno não entende quase nada do que ela fala. Mas também não gosta de esperar. Precisará repetir o ritual do pão inúmeras vezes. Do forno saem os assados que acabaram de fazer e, da mesa, passam às mãos. Ela lembra da multidão assentada na relva, alimentada pelo milagre; dos doze à mesa que pouco entendiam sobre o pão partido. O pequeno apenas sorri satisfeito com seu pedaço nas mãos.

Antes de se deitar, ela tomará com tristeza o seu comprimido para a dor. Seu corpo hoje precisa dos subterfúgios farmacêuticos. Porém, ela dormirá feliz, pela esperança que rondou a casa e habitou em si. Sonhará com o banquete, onde certamente o anfitrião servirá pão. E, por alguns dias, na mesa do café da manhã, eles comerão as alegrias e as dores que amassaram juntos.


sexta-feira, 14 de abril de 2017

Casa


As janelas são grandes e os vidros espessos. Tenho vontade de abri-las frequentemente. Não há grades, nem perigo. A violência aqui é a força do vento. Tudo é bem lacrado para evitar a sua entrada. Abre-se uma fresta nos dias mais quentes. Apenas uma greta. Dentro das casas, o calor e o frio são sensações reguladas por artefatos humanos.

As janelas emolduram a vida. Ocupam o espaço de uma parede quase inteira. Especialmente nos dias com luz, funcionam como um quadro rico em cores e movimentos. Sobretudo em movimentos. Pessoas e carros transitam no cenário das cores, que acabam mudando de tom de acordo com os humores do sol. 

Minha janela vê outras janelas. Igualmente lacradas. O vento no rosto faz-me falta. A carícia do vento. Vejo os passantes como num quadro vivo e lembro-me do modo doce como o vento empurrava meus cabelos. Quando, na calçada, seu ritmo me embalava. Respiro fundo. Anseio por essa troca quase imediata de ar, que não vem. Meu olhar se perde.

O cenário cheira a clausura, mas não o é. Do lado de fora da janela, uma repetição desmedida beira ao tédio. Entro. No espaço onde estou, papéis e livros, roupas espalhadas, brinquedos e outros tantos objetos me acolhem. Não importa se móveis ou eletrodomésticos não me pertencem. Num impulso maternal, eu os adotei para mim. Mais justo dizer que nos tornamos velhos conhecidos que acabaram de se conhecer. Almas amigas.

Minha casa é tato, é cheiro. Recuso-me a vê-la apenas à noite, entrar nos seus aposentos apenas para dormir. Ela é mulher única. Merece ser apreciada dia e noite, em sua inteireza. Nela, um odor de café convida-me a assentar e cismar, durante as tardes e manhãs. Nela, há uma presença quase palpável, mesmo sem voz alguma. Leio, reflito e, por vezes, escuto um sussurro leve ao pé do ouvido. Gosto do movimento dos bares-cafés. Aprecio o silêncio das bibliotecas. Mas, na casa, o silêncio fala. Respeito sua falta de palavras e ela, a minha. Fazemo-nos companhia por dias a fio.

Minha casa tem gordura nas louças por lavar, picumãs pelo corredor, cobertas sem dobrar, mochila no chão, mochila no sofá. Vê-la como está não é sempre um prazer. Mas temos a intimidade do ser. Compreendemos as nossas limitações. Sem vergonha, abro as suas cortinas e deixo a luz entrar. Seria difícil, a essa altura onde estamos, que alguém pudesse ver todos os seus detalhes. Mas também isso não me incomodaria. Os raios de sol que lhe atravessam fazem bonitos desenhos no chão. E há ainda o mais profundo interior. Entro.

Minha casa é um imenso vácuo. Sem objetos seus, sem móveis emprestados. Não chega a ser assombrada, mas está vazia. Começo a listar. Desejo uma cozinha para alimentar os famintos. Sala, para conversar com os aflitos. Preciso de água no banheiro, para que os que estão sujos se lavem. E as crianças ficariam mais felizes numa varanda onde pudessem correr. Rachaduras e buracos nas paredes exigem pequenos e grandes reparos de mãos habilidosas. 

Lamento não ter muito a oferecer nela, lamento a falta de tudo lá dentro, lamento as habilidades que me faltam para os reparos. Lamento. A poeira cobre a casa mais que picumã; a sujeira, mais que a gordura da louça. Há um silêncio nela, nem sempre tão aconchegante. Mas sinto também uma fragrância de perfume. Nessa casa há janelas. Encosto as cortinas, como na outra. 

Uma luz vinda do porão sobe as escadas e vaza pelas janelas, mesmo fechadas. E foge pelas rachaduras, grandes e pequenas. Direção contrária. Um grande espectro de luz brilha do lado de fora por causa dela. Parece que o sol mora ali. A noite, quando todos dormem, e a escuridão toma as ruas, a casa brilha. Ela ilumina a casa onde as pessoas e carros são emoldurados pelos vidros da janela. Depois, ela enche os olhos de quem vê pela janela, e sonha com casas por toda a cidade.



sexta-feira, 7 de abril de 2017

Aliança


Nós aceitamos a diferença. E fomos. Demos as mãos e rumamos por uma trilha de terra seca por onde andar e grama verde no horizonte para deitar os olhos. Não tão romanceado quanto colocar uma mochila nas costas e percorrer o mundo. Não menos emocionante que descida de montanha russa em parque de diversão. Nossa gargalhada, na chegada, é um misto de alívio e prazer.

Damos as mãos. Palma posta contra palma, vemos no olhar frente ao nosso um outro eu. Calmamente desembaçamos a visão um do outro. Janelas, não espelhos. Somos brilho do sol e chuva que cai. Tentamos insuflar no peito alheio as alegrias e as dores que lhe faltam. Nada tão sério que não caiba no riso fácil de uma piada boba. Nada tão banal que não tenha a força do mistério.

Abrimos nossas mãos. Estendemos os braços para os lados. Livramo-nos do apenas nosso. Nosso lar, uma ciranda. Amor que não cabe em nós, deságua. Um olhar-menino traz a força da brincadeira para os nossos dias. Recém-chegado ensina-nos o peso e a leveza do tempo. Nele um tanto de nós que nos desconcerta. Nele tão pouco de nós que o torna singular.

E saímos prontos a dar as mãos e a abraçar o mundo. Com um amor que queima no peito. Como o daqueles que, tardos em entender, acabam reconhecendo a voz do mestre. Estamos prontos. Em prontidão, não preparados. Rumamos com o quem vem pelo caminho nos falando de amor. Desde a eternidade. Dentro da história, no reino que trouxe até nós. Nessa roda o atrito é força que produz o fogo, que aquece a brasa, onde se faz o peixe e se alimenta a comunhão.

Paramos. Sonhamos alto e por vezes tão pequeno. Assentamo-nos sempre num canto qualquer onde caiba mais que uma voz. Tão humanos e tão cheios da divindade. Olhamos para a família da manjedoura e  para a família eterna. A deliciosa dança. Dentro de nós, a vontade de ouvir e acolher, de comer apenas o que se pode repartir. Relacionar.

Na beleza do noivo, o amor esperado. No filho, o amor dividido. Se nada ou ninguém nossas mãos puderem tocar, tocamos juntos a dádiva de andar lado a lado e também a de cirandar. Aproximamo-nos da fragrância única do seu perfume, da diversidade estonteante das suas cores. O arco do céu pousou em nossas mãos. E ele traduziu para nós: somos um.