E tudo se apagou de repente. As cortinas do palco foram cerradas e o espetáculo terminou sem aplausos. Uma súbita escuridão os invadiu. As mãos, as duas juntas, taparam com força os lábios, para conter o susto. Haviam matado. Como nunca antes fizeram, como nunca antes pensaram em fazer. O fato lhes aparecia assim: cru. Meu corpo também sentia a dureza da morte.
Era um dia de sol. Um dia de céu azul claro, sem nuvens. Daqueles que conseguem reunir na rua, em todas as ruas, as crianças do bairro para brincar. Rua larga e ladeada de largas casas. Um pedacinho do interior na cidade grande. Árvores em arco, abraçando-se próximas do azul. Um corredor de vida. A memória, trapaceira, não consegue se lembrar das brincadeiras do dia. Pode se esforçar para busca-las dentro de si, mas não encontra. Como poderia? Apenas o ato brutal ficou riscado na alma. Como o preto do carvão na calçada. Como o branco do giz no asfalto. Marcado.
Ao olhar pela cara do céu e da vítima, não havia indícios do que aconteceria. A manhã iluminada prometia inocentes aventuras. O movimento começara cedo naquele dia. Os portões das casas se abriam um após o outro. Em poucas horas, todos os meninos já estavam reunidos na rua. Quero pensar que corriam e riam, pois era isso que faziam de melhor. De repente, ele apareceu. Despertou em nós o desejo de voar, que já nos habitava. Como todas as crianças da roda o fizeram, eu também o tomei em minhas mãos.
Era uma espécie frágil. Provavelmente havia sido lançado ali pela força do vento. Se bem que não havia ventos tão fortes naquela manhã. Talvez, tenha caído do ninho. Talvez. Não conseguíamos identificar ao certo de qual árvore ele teria tombado. Elas se entrelaçavam em tamanha cumplicidade, que ficava difícil um veredito final. Bem, ele estava ali. Não parecia desconhecer as suas asas, apesar de uma delas estar ferida. Ao menos é o que conseguimos deduzir, já que não ousava levantar voo. E por não sabermos com exatidão a causa de sua queda no meio da rua, da nossa rua, nem podermos dar um diagnóstico preciso de seu estado, o acolhemos com os nossos olhares.
É preciso lançá-lo ao alto – uma voz adulta sugeriu da calçada. Assim ele toma forças e torna a voar. Ela falou assim, como se espirrasse, respingando naquele quadro em nossa frente todas as suas tintas. Permanecemos apenas acompanhando a pouca movimentação do bicho. Estáticos. Como nenhum de nós tinha coragem suficiente para a experiência, a voz invadiu a rua com toda a sua certeza e tentou o voo forçado, lançando o pássaro ao alto. Nós, apenas em silêncio, seguíamos com curiosidade as mãos que deixaram uma greta para o bicho respirar. Das mãos, a avezinha alcançou o céu, e, do céu, tombou novamente ao chão. Pum! Levamos um susto com a queda; que não fora nem tão forte e nem tão alta, como em mim hoje ressoa. Mas, fez-nos estremecer, por nos imaginarmos por alguns instantes no lugar do que ora caía novamente. Depois, fomos tomados de uma estranha indignação. Que asas eram aquelas? – perguntávamo-nos, sem precisar falar. Como não voar, se a natureza lhe dera asas? Asas!
Pela rua, em doida correria, nós sempre abríamos os braços em bando. Em alguns dias, trepávamos nas árvores mais altas para, pulando de seus galhos, voarmos pelo menos por alguns instantes. Guardávamos, na nossa curta lembrança, a gostosa sensação daquele tempo em que saltávamos de lugares muito altos para a pouca idade e caímos livres nos braços de nossos pais. Sem contar as pipas, os aviões de papel e toda tentativa de voo que cercava a nossa infância. Um verdadeiro desejo de voar. O pequenino caído em nossa rua não precisava de invenções. Era, de fato, um pássaro. Suas asas, verdadeiramente asas, faziam-nos sonhar e esquecer o ferimento em uma delas.
Como a voz adulta já havia nos deixado, decepcionada com a sugestão que não vingara de imediato, resolvemos dar prosseguimento ao empreendimento. Para nós, era só uma questão de tempo e determinação. O bichinho ali nos pedia uma resposta. Então, começamos a passa-lo de mão em mão. Cada um que o pegava, acreditava. Eu também acreditei. E o lançamos inúmeras vezes ao ar. O tempo entre um lançamento e outro não era maior que o tempo da queda e do encontro com uma nova mão, que tornava a lançá-lo.
O experimento logo virou brincadeira. Sorríamos em grande alvoroço. Agora éramos nós que pintávamos com as tintas que a voz lançou. Esfregávamos mãos e pés, numa desordem típica de nossa idade. Seguíamos com entusiasmo o colega da vez, que abria as pernas, arqueava-as, pegava um grande impulso com o bicho escondido nas mãos e vruuuum! Lá se ia o nosso pássaro. Aguardávamos sua chegada ao céu com grande expectativa. Antecipávamos a alegria que teríamos ao vê-lo voar. Torcíamos por ele e frustrávamo-nos todos ao vê-lo cair novamente. O pássaro resistia bravamente aos lançamentos e quedas. E nós entendíamos que este era o sinal que nos dava para uma nova tentativa. Guardávamos a certeza: ele voaria. Voaria em nome do desejo de cada um ali. Levaria em suas asas os nossos sonhos de nuvens, de atravessar as nuvens e ver um novo desenho se formar no céu. De ver o mundo do alto e de sentir um frio na barriga com a descida brusca.
Foi quando a nuvem negra surgiu diante de nossos olhos. E tudo se apagou. Um baque na alma. O coração batia forte e a respiração acompanhava ofegante. Fizéramos algo muito errado. Pressenti. Mas, o quê? Nós só queríamos... Havia vida depois da morte. Vimos atônitos muitas larvas saírem daquele corpinho frágil. E torcemos o rosto numa reação confusa de asco e compaixão. Morrêramos. Sentimos forte o chamado da terra, do chão que pisávamos, dos raios do sol a nós pedir providências. Rapidamente, alguém abandonou o grupo e correu em casa para pegar uma caixa de fósforos vazia. Não sei mais se quem sugeriu o arranjo foi o menino veloz ou foi a voz. Só sei que permaneci no mesmo lugar. O peso da tristeza imobilizando-me as pernas. Segurei, no meio da rua, uma dor sem choro, apenas no peito.
O pássaro era como nós, e só agora eu o sabia. A frieza da morte doeu em meus ossos. Não sei como tudo se organizou entre nós. A memória ludibria-me. Depositamos com algum cuidado o corpinho na caixa amarela improvisada. Depois a enterramos num buraco não muito fundo do campinho de futebol, onde havia terra suficiente para revirarmos. Quero acreditar que houve algum cortejo pelo pequeno e que fabricamos uma cruz com dois palitos que sobraram da caixa de fósforos. Tudo como nos diziam que ele merecia e que nós ainda não sabíamos fazer. Acabou. Naquele chão, não era um pássaro que enterrávamos, eram nossas próprias asas.
Não sei por que insisto em lembrar daquela pequena caixa como se fosse roxa. Uma roxa memória. O pássaro não poderia caber nas caixinhas mais miúdas, que, sem rótulo, seriam desta cor. Cor da morte. O caixão do pequeno era certamente amarelo. Um amarelo vivo com aqueles desenhos vermelhos e pretos em cima, que nada tinham a ver com a solenidade. O fato briga com a memória no caminho do texto, empurrando para o palco uma luz inesperada. Sou salva por esse guache amarelo que entorna no papel e na alma. A história cria a cor e desembaça o olhar. Saio como criança que volta à rua para brincar novamente. Leve. Como se a lembrança não tivesse sido carregada até aqui a duras penas. A imaginação retira do chão os meninos que queriam voar. E, num outro céu, em bando, escuto a gargalhada passarífica de todos nós. Som de travessura. Cara de molecagem. Cortando a nuvem, agora fazemos os desenhos que tanto sonhávamos no azul.
Lindo, acho que reflete bem aquela velha e boa perguntinha da humanidade: qual é o sentido da vida?
ResponderExcluirNum é?
ResponderExcluirNossa, que lindo relato, escrito com sensibilidade, amei, apesar da morte do passarinho
ResponderExcluirQue bom que gostou! Fico feliz. É, a morte é mesmo dura.
ResponderExcluirQuel beau texte!!! Nos souvenirs d'enfance nous apportent toujours de bons sujets pour écrire!Congratulations, chérie! <3
ResponderExcluirMerci, Marô. Sempre bom ter você por aqui. Ando com seu garoto das bolinhas de gude na cabeça...
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