Ela
não sabia o que fazer com as suas angústias. Abriu uma gaveta e as depositou
ali. Abriu uma outra, com todos os remédios que comprou para si, pegou um deles
em suas mãos e engoliu. Seu corpo aprendeu a adoecer para toma-los. Quase todo
mês visita um especialista e reclama algo novo, de novo.
Já
teve dor no peito, nas costas, na cintura. Inflamação de garganta, dor de
cabeça, problema de vista, nariz entupido, otite e dor no maxilar. Dor de
barriga, nos rins. Já lhe doeram as pernas, os joelhos, a planta do pé e todos
os dedos. Os braços, os cotovelos, as mãos e todos os dedos.
Até
que um dia abriu a gaveta. E resolveu transformar sua dor em palavras. No fim
das contas, não precisava apenas falar, mas transformar. Fazer um bolo real do
bolo feito no peito, na garganta ou em qualquer lugar de si. Necessidade física
de fazer a farinha virar massa e de ver a massa virar pão. A escrita lhe é
palpável.
E na
massa que hoje faz, acrescenta farinha conforme lhe manda os olhos. Toda boa
cozinheira faz de olho a receita - repete a sua mãe, sem que nada precise
dizer. Ela, por sua vez, afunda as mãos, pressiona a massa boa de manusear e,
agora, já não existem gavetas, nem o que dentro delas havia. Consegue reunir
tudo que é naquela bacia. Nada de si subtraído. Enrola com gosto o bolo redondo
em suas mãos.
Outro
dia assentou-se com o pequeno para ensinar-lhe a lidar com as próprias
angústias. Ele achava que fazia pão. Ou, mais certo, cria numa experiência com
o mundo, que se resumia, ainda, a uma massa mole, sem ponto algum. Mas ela
ensinava-lhe a arte de trabalhar com as mãos para liberar a alma. De colocar
toda a alma para trabalhar.
Ela
pensa constantemente no coentro branco que caía do céu. Na quantidade exata.
Provisão diária para a feitura de um pão com gosto de mel. Maná. Numa mistura
que faz a massa cinzenta, ela lembra do pai, que todas as tardes levava o
saquinho ocre com pães francês para a casa. O gosto do maná devia-lhes ser
familiar e não enjoativo, como a princípio ela imagina. Assim como o pão feito
de cascas e miolo, cheio de muito ar do lado de dentro, que para ela tem hoje
um gosto nostálgico.
O maná
é como esse pão que ora prepara. Sempre uma expectativa. Ela não tem o que
guardar para o dia seguinte. Mas, seus pensamentos já se enchem de bolor, pois,
como os que não sabem esperar, imagina que guardaria a farinha, se a tivesse
todos os dias. Por demais angustiada com a vida, o Pai colocou em suas mãos
poucas porções. Sem sobras.
É
preciso se esquecer nessa massa, filho - explica. Fazer um grande rolo com o
que está nas mãos. Depois, cortar os pedaços, passar o amarelo do ovo em cima
e ver a casa se encher de calor e cheiros. E, enfim, esperar. Não há nada
melhor do que a espera seguida da partilha.
O
pequeno não entende quase nada do que ela fala. Mas também não gosta de
esperar. Precisará repetir o ritual do pão inúmeras vezes. Do forno saem os assados que
acabaram de fazer e, da mesa, passam às mãos. Ela lembra da multidão assentada
na relva, alimentada pelo milagre; dos doze à mesa que pouco entendiam sobre o
pão partido. O pequeno apenas sorri satisfeito com seu pedaço nas mãos.
Antes de se
deitar, ela tomará com tristeza o seu comprimido para a dor. Seu corpo hoje
precisa dos subterfúgios farmacêuticos. Porém, ela dormirá feliz, pela
esperança que rondou a casa e habitou em si. Sonhará com o banquete, onde
certamente o anfitrião servirá pão. E, por alguns dias, na mesa do café da
manhã, eles comerão as alegrias e as dores que amassaram juntos.
Esse texto é muito profundo. Quero fazer pão, amassar o pão com as duas mãos.."tenho apenas duas mãos e o coração no mundo"...Mas também achei um pouco triste, tem uma névoa sutil. Mas uma coisa me impressiona na sua escrita: é um mergulho.
ResponderExcluirSim, acho que tem sempre uma nuvenzinha no céu claro ou um raio de luz num dia nublado. Obrigada pelos comentários. Mergulhemos!
ResponderExcluirAcho que estou precisando fazer uns pães...
ResponderExcluirPois faça, é terapêutico!
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