sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Ruas e gentes

Há ruas que me cortam. Há ruas que passam por mim. Num lampejo de memória, elas me atravessam e se vão. Fico parada, silenciada no agora. São elas que me percorrem. Rasgam a minha alma. Sou então transportada para esse outro tempo, em que os olhos fotografaram a passagem, a paisagem.

Não são necessariamente belas essas ruas. Na sua quase maioria não o são. Porém, elas captam algo de mim. Muito mais do que o registro que delas consigo fazer. De repente, pertenço àquele canto de mundo, às suas curvas e asfaltos, ao verde que lhe abraça, ao céu daquele dia. Ao me retirarem de onde estou agora, elas me lembram das outras vidas que já vivi. Não permitem que eu esqueça, que eu me esqueça. Pois fui ali e sou aqui, cheia de ruas que outrora passei e agora passam por mim.

Há pessoas que fazem morada em mim. Ao delas me despedir, procuro em que lugar do passado sempre nos conhecemos. Não as escolhi. Geralmente, num primeiro momento, as olhei e desprezei. Seja pelo que nelas faltou ou pelo que vi em abundância. Preferi permanecer comigo mesma do que abrir-me ao milagre da alteridade. Medi, avaliei, julguei, mas não me doei. Encabulei-me.

Mas quando por razão qualquer a vida nos coloca no mesmo ponto e ouço essa outra voz que não a minha, sou inundada. Enche-me a graça de ser gente, de ser igual e diferente, de ser transparente. De repente, pego-me apegada a esse ser tão rico. A alegria do encontro é sem medida. Toma-me uma saudade imensa de tempos não vividos, que não vivemos. E uma dor por esse agora que vez ou outra será repetido na minha memória. Um agora descolado do passado, perdido em relação ao futuro. Ele me captura para si, e o presente é um eterno retorno.

Ruas e gentes me descrevem, mas vivem independentemente de mim. Não precisam da força dos meus pensamentos, desconhecem meus sentimentos, mas me atraem repetidas vezes. Sou sugada por essas duas realidades que são minhas, mas sobre as quais não exerço controle algum. Apenas sei que são reais. E a presença de ambas é tão verdadeira que me constrange. Não posso pretender-me distante do mundo: das ruas e das gentes. De alguma maneira, elas compõem a minha alma. Estão tatuadas no meu corpo. Nesse desenho de beleza e dor. Ao cruzar vias e olhares, sei que foram meus. Ao me levarem para longe, sei que a eles pertenço.

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