Ela não sou eu. Os tempos nos separam. Quando escrevo, ela me deixa. Mas ela também sou eu. Somos muitas. Dou-lhe voz. Ela empresta-me histórias. Como o tempo lhe escapa, sou eu quem a faço viver. Seu sopro depende dessa escrita. Por ela, leio e planejo. Por meio dela, toco gentes e coisas. Ela me devolve uma realidade palpável, por vezes bela, por vezes áspera. Ela é organismo; é mãos e pés. Eu sou...
O melhor de mim empregado em cada tarefa quotidiana. Sou videira plantada em minha casa. Aqui floresço. Não estou desprovida de dons. Não enterrei talentos. Recebi como dádiva o tempo chamado agora. Já não imploro que aceitem o que minhas mãos estendidas ofertam. Semeio e também sou derramada nesse chão. Rego flores. Espero sementes brotarem. Sou água: límpida, ligeira, maleável, passageira, não existindo por mim, vinda da fonte. Ofereço mais do que tenho. Assim eu sou.
Mas o cheiro do lírio no interior da casa alcança a fechadura das portas e flutua no ar. A beleza que brota aqui dentro cria pernas e ganha as ruas. E sigo levando-a onde vou. Carrego amor na minha cesta de flor. Frente à frieza das ruas e das cidades, ofereço flores. Sou mulher, sou perfume.Num banco de praça, cercada de verde, encontro vida. Repouso. Mas preciso também ganhar corredores e salas, locomover de um prédio a outro, subir elevadores, carregar livros e lidar com pessoas. Até novamente subir as escadas de casa, depositar o cesto vazio e não pensar em flores, por ora.
Fim do dia, todas elas se encontram. Pedem força, falam-se rapidamente. Até que eu tomo meu lugar. Elas não precisam de registrar o tempo ou de cantar os seus atos. Eu preciso. Ao contempla-las, a vida se estica, se alarga, se representa. E ao fim e ao cabo, tudo que é corriqueiro, banal, pequenino e efêmero, ganha mais verde e verdade pelas palavras. Elas, deitadas sobre o papel; eu, observadora de quem são. Tão pobre que sou, elas me enriquecem. Tão pobre que são, eu as enriqueço. Assim, nos doamos diariamente.
Nossa, Mari, gostei demais. Uma longa viagem de poucos minutos de leitura vou ficar digerindo esses "eus" e " elas" que sou, somos.
ResponderExcluirLegal,Liz!
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