domingo, 6 de janeiro de 2019

Todas nós

Está exausta. Entregou-se por inteiro. Colocada a criança para dormir, e com outra sendo carregada no ventre, ela só quer largar-se sobre a cama. Não faz projetos de escrita e para a leitura, que lhe é cara, não encontra lugar. O cansaço a toma por completo. Suas orações são fragmentadas, embaladas pelo sono e por outros pensamentos esparsos que lhe tomam.


Ela não sou eu. Os tempos nos separam. Quando escrevo, ela me deixa. Mas ela também sou eu. Somos muitas. Dou-lhe voz. Ela empresta-me histórias. Como o tempo lhe escapa, sou eu quem a faço viver. Seu sopro depende dessa escrita. Por ela, leio e planejo. Por meio dela, toco gentes e coisas. Ela me devolve uma realidade palpável, por vezes bela, por vezes áspera. Ela é organismo; é mãos e pés. Eu sou...


O melhor de mim empregado em cada tarefa quotidiana. Sou videira plantada em minha casa. Aqui floresço. Não estou desprovida de dons. Não enterrei talentos. Recebi como dádiva o tempo chamado agora. Já não imploro que aceitem o que minhas mãos estendidas ofertam. Semeio e também sou derramada nesse chão. Rego flores. Espero sementes brotarem. Sou água: límpida, ligeira, maleável, passageira, não existindo por mim, vinda da fonte. Ofereço mais do que tenho. Assim eu sou.


Mas o cheiro do lírio no interior da casa alcança a fechadura das portas e flutua no ar. A beleza que brota aqui dentro cria pernas e ganha as ruas. E sigo levando-a onde vou. Carrego amor na minha cesta de flor. Frente à frieza das ruas e das cidades, ofereço flores. Sou mulher, sou perfume.Num banco de praça, cercada de verde, encontro vida. Repouso. Mas preciso também ganhar corredores e salas, locomover de um prédio a outro, subir elevadores, carregar livros e lidar com pessoas. Até novamente subir as escadas de casa, depositar o cesto vazio e não pensar em flores, por ora.


Fim do dia, todas elas se encontram. Pedem força, falam-se rapidamente. Até que eu tomo meu lugar. Elas não precisam de registrar o tempo ou de cantar os seus atos. Eu preciso. Ao contempla-las, a vida se estica, se alarga, se representa. E ao fim e ao cabo, tudo que é corriqueiro, banal, pequenino e efêmero, ganha mais verde e verdade pelas palavras. Elas, deitadas sobre o papel; eu, observadora de quem são. Tão pobre que sou, elas me enriquecem. Tão pobre que são, eu as enriqueço. Assim, nos doamos diariamente.



2 comentários:

  1. Nossa, Mari, gostei demais. Uma longa viagem de poucos minutos de leitura vou ficar digerindo esses "eus" e " elas" que sou, somos.

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