domingo, 14 de maio de 2017

O chamado


E como é que se escreve a alegria? A manhã me cutucou e me coloquei de pé. Ficou deitada a preguiça, rolando na cama. Atei cada lado da cortina e, quando pensei que olhava para fora, era o fora quem me olhava. Chamou-me: vem ver a luz do dia! Passava pouco da madrugada, mas parecia que as horas corriam há léguas em minha frente. Olhei o relógio. Nenhum atraso. Havia um brilho diferente nos olhos do céu. Era uma festa surpresa – supus. Fui convidada a cantar e celebrar a vida. De quem? De todos, de tudo.

E como é que se escreve a alegria? Os caminhões estão parados nas vias. Os homens descarregam suas máquinas. Andam de um lado para o outro. Cores fluorescentes marcam cones e uniformes. Um homem controla com sua bandeirinha o tráfego dos pedestres. O barulho dos tratores carregando a terra que foi revolvida e o som de furadeira do lado de fora compõem a orquestra matutina. O quarteirão em movimento segue a regência do maestro no meio da rua. E a cidade muda e o homem nela trabalha.

E como é que se escreve a alegria? A casa cheira a café fresco. Na mesa o tin tin dos sorrisos, uma música ao fundo que canta junto com a cidade. Palavras e pães distribuídos. O menino batuca na mesa, depois brinca no chão, faz pirraça, rola para tudo quanto é canto e segura o tempo em suas mãos. Balanço a colcha no ar. A luz me ajuda a ver a poeira saindo lentamente. Estendo a cama com paciência. Junto a roupa para lavar porque hoje tudo quer ficar novo. Xícaras na pia, chuveiro ligado. A água canta em todo canto. Separo artigos em minha mesa. Folhas inéditas. As folhas verdíssimas das árvores, as novas folhas para ler.

E como é que se escreve a alegria? Beijo nos lábios, beijo no rosto. Despedidas e uma promessa de reencontro ao final do dia. A casa em silêncio. O barulho que vai durar o dia inteiro do lado de fora. Gratidão por ambos. Joelhos dobrados, prece de socorro, porque tudo está apenas no começo. Não me demoro. Que Deus abençoe as nações, todo o mundo, cada gente, é o chamado de hoje. Os muitos cantos me convidam. Uma paz de não ter de cuidar de mim. E um desejo sem pé nem cabeça de colocar para fora o filho chorão.

E como é que se escreve a alegria? Se alguém sabe como não ser romântico, como não ser ridículo, como não parecer ingênuo, por favor, me diga. Se alguém não teme a palavra pobre, a experiência fugidia, o ritmo tropeçante, que me fale. Se alguém consegue não ofender com um sorriso o que sofre ou macular a alegria do que saiu para dançar, dê-me as mãos. Mas, hoje a alegria me chama, amigo. E me faz esse pedido esdrúxulo de escrevê-la. Eu pergunto a ela: mas, como? Ela sacode os ombros, moleca que é, e sai correndo na minha frente, procurando outros olhos carregados de beleza. Respondo contando cada canto. Depois, solto o lápis, continuo a lida.


2 comentários:

  1. Enquanto lia tuas respostas a alegria me abraçou na forma de um filho q veio me dar bom dia e se alongou p de baixo das minhas cobertas p me contar um sonho esquisito! Obrigada por compartilhar tuas respostas, despertar a minha e a do outro ao chamado!

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  2. Obrigada você, Sayô. Por embarcar comigo nesse texto.

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