Vamos, meu filho! Repito para o pequeno ao longo do caminho. Suas
pernas são miúdas, o tempo escorre com sua pressa costumeira. Ele para, pega um
graveto no chão, vira o rosto para acompanhar o barulho dos carros que passam,
cisma com alguém que segue na calçada. Porque seguro sua mão, a cada meio metro
sinto um solavanco. Tento respirar com paciência. A caminhada pela calçada iluminada é um espetáculo para seus olhos. Anda no passeio marcando presença,
fazendo barulho com o solado do sapato, balançando a cabeça como se ouvisse
música, equilibrando-se ora de um lado ora de outro do corpo.
A primavera chegou há pouco e o verde apenas começou a
aparecer. Mas, depois dos dias nublados, o sol, no céu do Norte, parece obrigar
os olhos a andarem apertados. A luz rasga o azul. As cortinas do grande teatro
se abrem e o mundo faz a sua reestreia. No palco da cidade, o pequeno acompanha
cada movimento. Abre os olhos surpreendido. Os ouvidos parecem também mais
apurados. E tudo que está ao alcance de suas mãos, ele quer tocar.
Vamos, minha filha. Ele repete para mim. Joga a corda e fica à espera.
Daqui de dentro nada posso ver. Nem mesmo imagens projetadas do mundo. A luz
não alcançava a entrada até as mãos que seguram a corda aparecer. Nesta
caverna, o mundo não é falsamente representado. Ele está ausente. Um eterno
revirar dos pensamentos em si mesmos o empurraram para fora. Subo com
dificuldade. A força que faço na corda me dói as mãos. O corpo inteiro num
esforço descomunal para chegar ao topo. Sinto a luz entrar. Acabo virando o
rosto na chegada, sem perceber. Faço força, uma perna depois outra, saio.
Respiro fundo na chegada. Sob meu antebraço, pressiono os olhos uma vez mais. Levanto
a cabeça com dificuldade. Minhas mãos estão dormentes. Cambaleante, equilibro o
corpo ora de um lado ora de outro, e vou.
O dia não está ensolarado. Caminho sozinha pelo
passeio, na companhia de um vento gelado que estapeia a minha face. Uma frieza
que desperta para a vida pela força bruta. Escondo-me no meu casaco. Sempre
preferi a carícia da brisa. Ergo os ombros e aperto os braços contra o corpo,
em clara rebelião contra o tempo. Minha mente esconde-se embaixo de pesados
cobertores, enquanto em meus ouvidos meus fones reproduzem uma música qualquer
que me ajuda na fuga. Não sei como do sonho pelo aconchego passo rapidamente às
espirais existenciais. Sigo rodando até cair num país sem maravilhas. Buraco
escuro. Pálpebras cerradas impedem a entrada e a saída da luz. Aqui dentro uma
conversa infinita se faz. O vazio não está em questão. Mas a clausura em si. De
repente a voz, a corda, o convite para subir.
Ouso recomeçar. Faço o caminho das crianças. Vejo a
gente que passa, retiro os fones para escutar o assobio do vento. Toco, com as
mãos do olhar, os galhos secos que estão no mais alto de uma árvore. Reparo as
construções humanas. Não consigo ir muito além – digo para mim mesma.
Convenço-me de que estou forçando a alma a sair. Uma outra e nova construção.
Subitamente, reparo as mãos machucadas pela corda, áspera corda lançada em meu
resgate. Fio grosso por onde a experiência se fez e se contou. Nas cicatrizes,
os muitos encontros, a troca possível, a história narrada. No topo, a luz, a
que veio para iluminar o mundo todo, esperava-me. Desconfio de quem sejam as
mãos que mantiveram a corda firme para que eu pudesse subir. Acordei de um sono
profundo. A alma, a criança e tudo que se chamou vida saíram pelas ruas batendo
palmas.
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