sexta-feira, 14 de abril de 2017

Casa


As janelas são grandes e os vidros espessos. Tenho vontade de abri-las frequentemente. Não há grades, nem perigo. A violência aqui é a força do vento. Tudo é bem lacrado para evitar a sua entrada. Abre-se uma fresta nos dias mais quentes. Apenas uma greta. Dentro das casas, o calor e o frio são sensações reguladas por artefatos humanos.

As janelas emolduram a vida. Ocupam o espaço de uma parede quase inteira. Especialmente nos dias com luz, funcionam como um quadro rico em cores e movimentos. Sobretudo em movimentos. Pessoas e carros transitam no cenário das cores, que acabam mudando de tom de acordo com os humores do sol. 

Minha janela vê outras janelas. Igualmente lacradas. O vento no rosto faz-me falta. A carícia do vento. Vejo os passantes como num quadro vivo e lembro-me do modo doce como o vento empurrava meus cabelos. Quando, na calçada, seu ritmo me embalava. Respiro fundo. Anseio por essa troca quase imediata de ar, que não vem. Meu olhar se perde.

O cenário cheira a clausura, mas não o é. Do lado de fora da janela, uma repetição desmedida beira ao tédio. Entro. No espaço onde estou, papéis e livros, roupas espalhadas, brinquedos e outros tantos objetos me acolhem. Não importa se móveis ou eletrodomésticos não me pertencem. Num impulso maternal, eu os adotei para mim. Mais justo dizer que nos tornamos velhos conhecidos que acabaram de se conhecer. Almas amigas.

Minha casa é tato, é cheiro. Recuso-me a vê-la apenas à noite, entrar nos seus aposentos apenas para dormir. Ela é mulher única. Merece ser apreciada dia e noite, em sua inteireza. Nela, um odor de café convida-me a assentar e cismar, durante as tardes e manhãs. Nela, há uma presença quase palpável, mesmo sem voz alguma. Leio, reflito e, por vezes, escuto um sussurro leve ao pé do ouvido. Gosto do movimento dos bares-cafés. Aprecio o silêncio das bibliotecas. Mas, na casa, o silêncio fala. Respeito sua falta de palavras e ela, a minha. Fazemo-nos companhia por dias a fio.

Minha casa tem gordura nas louças por lavar, picumãs pelo corredor, cobertas sem dobrar, mochila no chão, mochila no sofá. Vê-la como está não é sempre um prazer. Mas temos a intimidade do ser. Compreendemos as nossas limitações. Sem vergonha, abro as suas cortinas e deixo a luz entrar. Seria difícil, a essa altura onde estamos, que alguém pudesse ver todos os seus detalhes. Mas também isso não me incomodaria. Os raios de sol que lhe atravessam fazem bonitos desenhos no chão. E há ainda o mais profundo interior. Entro.

Minha casa é um imenso vácuo. Sem objetos seus, sem móveis emprestados. Não chega a ser assombrada, mas está vazia. Começo a listar. Desejo uma cozinha para alimentar os famintos. Sala, para conversar com os aflitos. Preciso de água no banheiro, para que os que estão sujos se lavem. E as crianças ficariam mais felizes numa varanda onde pudessem correr. Rachaduras e buracos nas paredes exigem pequenos e grandes reparos de mãos habilidosas. 

Lamento não ter muito a oferecer nela, lamento a falta de tudo lá dentro, lamento as habilidades que me faltam para os reparos. Lamento. A poeira cobre a casa mais que picumã; a sujeira, mais que a gordura da louça. Há um silêncio nela, nem sempre tão aconchegante. Mas sinto também uma fragrância de perfume. Nessa casa há janelas. Encosto as cortinas, como na outra. 

Uma luz vinda do porão sobe as escadas e vaza pelas janelas, mesmo fechadas. E foge pelas rachaduras, grandes e pequenas. Direção contrária. Um grande espectro de luz brilha do lado de fora por causa dela. Parece que o sol mora ali. A noite, quando todos dormem, e a escuridão toma as ruas, a casa brilha. Ela ilumina a casa onde as pessoas e carros são emoldurados pelos vidros da janela. Depois, ela enche os olhos de quem vê pela janela, e sonha com casas por toda a cidade.



2 comentários: