sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Panela de pressão


A mão segura os grãos de feijão. Deixa-os escorrer. Seleciona os que estão bons para o cozimento. Remove-os prazerosamente na panela funda de pressão. Prepara-os para serem lavados. Enquanto isso, enquanto a sensibilidade está a flor da pele e a textura dita o tom, escorrem textos, que se misturam ao feijão por fazer. Ela vê o feijão, pode senti-lo em suas mãos, mas o momento se distende, criando outros espaços que da mente escorrem.

Está feliz. Não escapou do tempo para escrever. Mas, de repente, dois espaços, logo em seguida, muitos espaços, ocuparam todo o tempo. A alegria medida pelos grãos de feijão, muitos, que desobstruíram o caminho entre ela e a escrita, há tanto impedido. Jorram textos naquela panela. Como esperado, ela não consegue ver a hora de coloca-los sobre a mesa.

Geralmente cozinha na pressão. Mas, agora, parece respirar. Parece que, desta vez, o ar não sairá esguichado e barulhento. Enche o peito, respira fundo. Alívio. Imagina-se no exercício diário e silencioso de segurar as palavras, deixa-las escorrer, seleciona-las, remove-las, prepara-las…Faz planos, anda de mãos dadas com a escrita. Reconciliação. Mesmo que não saiba exatamente em que ponto o laço se desfez, ou se chegou a desfazer-se, ou se chegou a ser laço.

Por ora, o feijão. Precisa ficar pronto. E ao colocar a casa em ordem, ela segue ordenando o pensamento, que só se organiza, de fato, por escrito. Talvez seria mais sincero dizer que a escrita lhe organiza por inteiro, lhe ordena. Ela apenas escuta sua voz e escreve. Mas, por ora, o feijão, em seguida, a casa. Guarda a expectativa. Cozinha-a em banho-maria. Essa maneira nova, esse novo estilo, parecem convir melhor à sua vida regrada. Um prato sem pressa, planejado, com o tempo preciso para ser feito, com os ingredientes selecionados. Nada de última hora. Nada de restos misturados.

Porém, num tempo que não viu, num espaço que lhe fugiu, sua cozinha transformou-se. Encheu-se de pratos e talheres por lavar. Não consegue mais ver o que estava fazendo, muito menos o que ainda tem a fazer. Perdeu-se no intransitável. A alegria deu lugar ao pranto e ela não consegue ver mais nada, apenas o que está a sua frente. Aquele tenebroso apito. Sua memória revive constantemente a panela de feijão aberta. Os grãos sendo removidos. Mergulha então o mais fundo que pode naquele instante. Mas não consegue se encontrar. A textura se foi...

Não há nada mais a ser dito. Ela apenas tirará o feijão do fogo e o colocará sobre a mesa. Comerá o seu sabor costumeiro. Vagando no espaço, seus olhos procuram o caminho por onde escoou a escrita. A pia entupida não lhe permite vê-la. E os pratos vão se lavando, mais comida cai pelo encanamento, mais distante de suas mãos ela ficou. Volta a cozinhar restos, oferta migalhas. Precisa por a mesa. Sente vergonha pelos pratos que esperam vazios. Como poderá neles deitar tão pouca arte?

Parou o tempo, poucos espaços. Algo se fez, entretanto, entretempos. Seu corpo adoece sem comida. Natural. O Verbo lhe nutre. Desde o início separando-lhe essa história. Desde o incontável inicio, toda a eternidade. Posta dentro de si, ela transforma-se em palavra. Mas o transforma-se tomba da frase. Tudo em estado bruto. Contudo, serve. Haverá apetite para esse prato? Não sabe. Cozinha. E apenas serve.


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