Sempre a mesma panela, cheia de histórias. Sem pressão,
por ora. Seleciono os grãos e deixo-os escorrer até o fundo. Não há muito o que
se deitar fora: nem pedras nem grãos estragados. O tempo corre fácil ao som
dessa cachoeira miúda. São meus dedos que escolhem a força da queda d'água.
Embaladas por esse som, dançam as belas palavras sobre
a Trindade. Escuto com atenção dividida, mas não menos atenta, a mensagem.
Afinal, tudo está sob a mesma mesa. Os caroços de feijão, os ruídos que
escorregam pelos meus ouvidos. Alimento preparado, partilhado, degustado.
De repente ele veio. Não o chamei. Apenas esfreguei
com mais força os grãos e a música se intensificou. Ele adora sons. Aperta o
dedo na bochecha, arregala os olhos e solta um imenso ó, ao ouvir algo novo.
Pressenti que a experiência sensório-musical lhe traria um prazer incontido.
Coloco entre as pernas a panela. Ele corre para pegar
os caroços sob a mesa. Não sabe muito a respeito de selecionar. Seu mundo é
mais feito de amálgamas que de separações. Ouve com facilidade o feijão, a
minha voz e a voz que anuncia a Trindade. Continua a correr para pegar os
grãos. Fatalmente eles tombam no chão. As mãozinhas miúdas não conseguem
carregar o tanto de alegria que gostariam.
Reclama um pouco por ter de juntar o que cai. Reproduz
um universo adulto, cansado de tomar tempo com o que cabe no tempo. Cata um por
um, coloca na panela. O ápice da história são as mãozinhas afundadas no feijão,
as perninhas trêmulas de tão felizes, quase saltitantes, os olhos que não param
de sorrir para mim, o aprendizado da palavra que, por fim, traduzirá o momento.
Ou, ao menos, tentará.
Olho com satisfação. Em algum lugar de mim o texto se
escreve. Enquanto isso, numa outra e mesma terra caem as sementes da Trindade.
Ou talvez seja primeiro num maço de algodão molhado. Como aquele que a gente
espia ansioso nos tempos de escola para ver que, sim, a semente pode brotar. Tanta
água sobre si cotidianamente…
Vê-la saindo desses filamentos branqueados, dessa
neve, dessa página, dessa trégua, dessa dor, é como um suspiro profundo. Ainda
que o caule que a sustente seja frágil, ele carrega a cor da esperança, como se
convencionou dizer. E há esse olhar-menino posto sobre ela. Vibrante.
O pequenino grão me trouxe para fora, quando, na
verdade, foi eu quem lhe apresentei a vida. E brincamos. Na soma das vozes e dos sorriros, a Trindade. Mãos
dadas a cirandar. Céu que pousou sobre nós. Céu que jamais se afastou de nós,
amalgamado à vida toda. Famílias reunidas nessa mesa hoje e desde sempre.
Filho, feijão, semente minha. Hoje, nasci mais uma vez.
"O pequenino grão me trouxe para fora, quando, na verdade, foi eu quem lhe apresentei a vida." - Lindo isso!!! Que texto gostoso! :)
ResponderExcluirObrigada, Marô.
ResponderExcluirEste texto é tão belo que parece música. Quem dera se todas as canções tivessem o seu ritmo!
ResponderExcluirHá beleza das cenas mais cotidianas e "ordinárias". Obrigado!
Que comentário lindo e cheio de generosidade. Obrigada, Lissânder.
ResponderExcluirQuanta doçura em palavras!
ResponderExcluirObrigada.
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